A entrevista com o cantor Jorge Vercillo deveria ser sobre a turnê dos 20 anos de carreira, show que ele apresenta nesta sexta-feira (30), no Teatro Guararapes. Mas a conversa, por telefone, seguiu outro rumo. "Prefiro falar sobre a sociedade, ecologia ou outros assuntos e não só da minha carreira. Não quero focar apenas no meu umbigo", disparou. Em bate-papo que deveria durar 20 minutos e quase chegou a uma hora, Jorge falou sobre a relação dos filhos com a música, a missão de compor, a Copa do Mundo no Brasil, o momento político conturbado que vive o país, a ditadura militar e a necessidade de consciência ambiental. “Costumo dizer que gosto de ser artista somente em cima do palco ou quando estou compondo”. E continua: "Compor é um trabalho superior. Servir como antena dos pensamentos e captar o inconsciente coletivo", explica.
Sobre o show desta sexta, Vercillo adiantou que será um espetáculo dinâmico e abrangente, e vai incluir canções de vários momentos da sua carreira. “Chego a um momento em que quero ser menos responsável. Principalmente no palco, onde a espontaneidade é primordial”, pontua o artista que preparou muitas surpresas e novos arranjos. O repertório passeia por toda a diversidade musical do artista, com canções como Avesso, em versão com o DJ MAM, Melhor Lugar, Devaneio, Fênix, Face de Narciso, Homem-aranha, Encontro das águas e muitas outras. “Criamos um momento de voz e violão, onde sentarei no meio do palco e cantarei as prediletas da plateia”, adianta. O cenário arrebata o clima intimista do show, com uma série de projeções em telão que mostram cenas da vida e da obra de Vercillo. A direção artística é de André Neiva, e iluminação de Alberto Ramos.
Confira trechos da entrevista:
Rotina
Faço questão de ter um dia-a-dia normal. Moro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, num bairro bastante reservado. Não abro mão de passear de bicicleta com meus filhos, levá-los à escola, na lagoa ou ir ao shopping. Nunca tive problemas. Os fãs me abordam de forma educada e gosto disso.
Filhos
Tenho dois filhos: o Vinícius, de 12 anos, já está compondo, toca violão e guitarra. Quando ele chega da escola, passa o dia inteiro praticando. Já o Victor, de 7 anos, optou pela bateria e percussão. Ele é fã do Claudio Infante, meu baterista. É muito cedo para pensar se vão seguir carreira ou não, não estou preocupado com isso agora. Acho mais importante a construção de bons ouvintes, para que eles não venham a ser como as gerações de hoje, que têm péssimos ouvidos harmônicos e ouvem música de péssima qualidade.
Ensino musical
Se subestima a capacidade do ser humano. Alguns artistas populares até gostariam de ter espaço para fazer uma música de qualidade, mais vivem reféns da mídia televisiva e possuem um crivo musical muito baixo. Não estou falando de nenhum gênero em particular. Sei que é possível fazer axé, funk ou forró de qualidade. Quando ouço as letras dessas músicas, me assusta. E elas não possuem melodia alguma. As pessoas estão tomando água suja achando que é vinho. A lei do ensino musical obrigatório nas escolas vai ajudar neste quesito: construir mais ouvintes de qualidade que bons músicos.
Jogador de futebol
Queria ser jogador como a maioria dos meninos. Meu irmão mais velho, o Otávio, ouvia muita MPB. A parti daí me despertou o interesse. A minha tia Lêda teve esse pressentimento e sugeriu que fizesse uma aula de violão. Desde então ele (o violão) se tornou um companheiro. Sou escravo das melodias. Compor é um sacerdócio. Uma melodia não te abandona enquanto não for realizada e finalizada. Tenho sempre um gravador à mão e em seguida coloco as letras.
Copa do Mundo
Tenho material pronto para lançar dois discos com inéditas, mas esse momento conturbado de Copa do Mundo, greves por todos os lados e eleições atrapalha muito. A Copa deveria ser motivo de alegria, mas está sendo uma vergonha com obras superfaturadas. A população precisa endenter que quem rouba não é a situação. O que vejo é que a população coloca a culpa no governo, na presidência. É preciso enteder que não se pode culpar um lado só. O que vemos é uma conjunção de partidos. Não acredito no sistema por inteiro. Está tudo errado, não só no Brasil, mas do mundo.
Eleições
Há muito tempo não me vejo tão desanimado em votar. Qualquer representante que venha a assumir o poder não vai conseguir mudar a realidade, porque o sistema está corrompido.
Ditadura
Alguns pensam que ‘alguém’ tem que resolver pra gente, mas não é a ditadura que vai isso. Um absurdo pensarem assim. Foi um período desumano, que torturavam e matavam quem pensava diferente. A minha família sofreu muito com a ditadura. Meu avô Joaquim Barbosa de Souza foi fundador do Partido Comunista Brasileiro, em 1922.
Democracia
A Democracia é uma construção lenta. Entramos numa Ditadura social e econômica. Vivemos com a Ausência do Estado que não tem poder para parar a ganância das iniciativas privadas e das grandes corporações.
Músicas
Sou mais transgressor do que um cantor de música romântica. As minhas melodias levam a uma doçura e lirismo que são associados ao romântico. Meu romantismo é sonhar com um mundo melhor. Não me enquadro nesse clichê de cantor romântico, nem como cantor, nem como pessoa. Fico feliz quando as pessoas percebem o teor político das minhas letras. "Nada vai me fazer desistir do amor", em Que nem maré, esse amor que canto é algo mais abrangente. Em "chega de assaltos pra impedir, seja em Brasília ou aqui" (Homem-aranha), falo sobre os roubos aos cofres públicos. Em Todos nós somos um... "se eu acredito que junto contigo podemos salvar as florestas, o que estamos esperando? o que é que falta explicar?", a natureza é elemento central e explora o tema da poluição. É necessário criar a consciência de que os recursos naturais são finitos.
Solução
O mundo está em transformação. Primeiro é preciso evoluir por dentro, entender que somos uma humanidade só. Precisamos de uma evolução mental, ética, moral e social.
